17 de junho de 2021

Mortas-vivas.

Por Fernando Mota

Bastou fechar os olhos por alguns instantes para que Clarice Lispector pudesse aparecer.

Eu não tinha marcado nada com a Clarice e até me assustei quando ela se aproximou carregando A hora da Estrela.

A hora da Estrela. Estrela é um corpo celeste com luz própria que gosto de admirar e, de alguma maneira que não sei explicar, Clarice sabia disso. 

Um pouco sem jeito perguntei a ela se queria se sentar e tomar alguma coisa. Clarice disse que queria tomar o mesmo que eu tomava, então… pedi mais um copo pequeno e uma garrafa cheia, se possível, a mais gelada que tivesse, pois estava quente pra burro e nossas goelas, secas. 

Clarice sentou em minha frente, cruzou as pernas e acendeu um cigarro. Nunca tinha visto alguém acender um cigarro tão lindamente como ela. Depois ficou ali, de frente pra mim, me olhando em silêncio como quem lê e interpreta a linguagem corporal. 

Instantes depois, alguém encostou na mesa e imediatamente senti um calafrio mesmo sem saber quem era. Virei, era a Carolina Maria de Jesus, quase tive um treco! É sério mesmo? Porque se for mesmo um sonho, eu quero que seja lúcido e me recuso a acordar! 

Bobamente admirada, queria ter dito a ela que amo sua escrita e sua história de vida. E que também nasci no dia quatorze e também escrevo literatura marginal, mas… não consegui dizer nada, NADA!

Rainha da vivência e da visão, Carolina Maria de Jesus sorriu com o Quarto de Despejo nas mãos. Senti meu coração tão quentinho com aquele sorriso de quem tudo sabe sem ouvir uma palavra sequer. Ela sentou-se ao meu lado e quebrando o silêncio na mesa queixou-se que veio lá de Sacramento a pé. Pensei: Cacildes… de Minas Gerais para São Paulo a pé? Ah não, a Carolina deve estar com uma sede da moléstia, vou pedir outra garrafa. Mas pra minha tristeza, Carolina não aceitou o suco de cevada. 

Cecília Meirelles encostou e trouxe Flores e Canções. Flores e canções sugerem mais uma garrafa e foi exatamente o que pedi quando a Cecília se sentou ao lado de Carolina. 

Felizona feito uma criança de chinelo remendado que desbica pipa no céu azul da quebrada, servi cada copo ali na mesa, inclusive, o copo do santo que é pra manter a proteção na ativa. 

Mal terminei de servir a Cecília e já senti o abraço de alguém, mas quem? Virei. Cora Coralina! Segurava o Tesouro da casa velha e antes de lhe retribuir o abraço fui buscar uma cadeira para Cora se sentar. 

Bastou fechar os olhos por alguns instantes para perceber que só morreu quem ainda não escreveu. 

Marah Mends, autora, integrante do coletivo Poesia é da hora e apresentadora na Cantareira FM.

Imagem 1: retirada do site https://d.emtempo.com.br/cultura/282187/centenario-escritoras-comentam-os-misterios-de-clarice-lispector

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